Preparação vocal no carnaval
Carnaval é alegria, chuva, suor e cerveja. Mas para quem está em cima do trio, carnaval é trabalho, esforço e dedicação. Por isso, há 17 anos, a fonoaudióloga Valéria Leal realiza a preparação vocal dos cantores de trio, verdadeiros “maratonistas vocais” – como ela batizou.
A preparação visa a favorecer o uso adequado da voz, obtendo maior rendimento, sem prejudicar as cordas vocais – ou pelo menos, não fazer esforço desnecessário, especialmente neste momento de altíssima exigência. Assim como o atleta precisa alongar e aquecer os músculos antes das competições, os cantores precisam realizar aquecimento e desaquecimento da musculatura da laringe.
Além disso, é necessário desenvolver a resistência vocal, receber orientações e treinamento adequado para cantar muitas horas.Para quem está lá em cima do trio elétrico esta resistência vocal é muito importante – é a sobrevivência da voz. Quem canta em palco móvel, a céu aberto, não tem delimitação de espaço sonoro.
Mais: sofre com a poeira e a desidratação, devido ao calor do verão e à fumaça que sai dos caminhões dos trios. Além disso, o cantor, instintivamente, procura projetar a sua voz o mais longe possível, para que toda a gigantesca massa o ouça, mesmo havendo equipamentos de amplificação da voz e uso de periféricos com efeitos – para dar à voz corpo, brilho e penetração.
Mais ainda: como as músicas são todas de andamento rápido, a agilidade vocal do cantor é extremamente exigida. E ainda há a valorização da percussão: originalmente o instrumento musical em destaque no trio era a leve e melodiosa guitarra baiana; hoje em dia, o diálogo com os tambores está na linha de frente – pedindo corpo, volume e mais projeção da voz. Cantar, pular e dançar freneticamente durante longo período pode levar ao limite físico do artista, até mesmo por maior gasto de energia e aumento da temperatura corporal. Um esforço extremo pode causar inflamação e até o aparecimento de lesões como edema e hemorragia nas cordas vocais.
O CARNAVAL É UMA ÓPERA ELEVADA À MILÉSIMA POTÊNCIA
Cantar no carnaval pode ser mais desgastante do que enfrentar uma ópera. O cantor lírico prepara-se durante anos com aulas de canto e tem cuidado excessivo com a voz. Numa ópera, interpreta um papel, cantando menos tempo e com mais preparo vocal. Cada gênero musical exige qualidades vocais distintas e demandas específicas.
Cantar bossa nova por duas horas significa desgaste bem menor do que cantar axé music pelo mesmo período. Cantar no carnaval não é pra qualquer um.As apresentações podem chegar a oito horas consecutivas, diferente da duração de uma ópera. A cada hora, um cantor de trio elétrico pode cantar cerca de 20 músicas. Somado a este fato, os gritos e emissões em forte intensidade podem estar presentes em quase todas as canções.
Para efeito de ilustração, num percurso de 6 horas durante o carnaval, poderão ser cantadas cerca de 120 músicas, somadas a 120 emissões de voz falada com intensidade aumentada e gritos com o objetivo de conquistar a animação do público.
MONITORAMENTO HIGH-TECH DA VOZ
A evolução das pesquisas sobre a fisiologia do canto e o uso de softwares de monitoramento da qualidade da voz tem favorecido a compreensão das habilidades e dos riscos envolvidos no canto de longa duração. Durante o carnaval, o monitoramento vocal realizado pelo fonoaudiólogo é realizado dentro do trio com software de análise acústica, conectado à mesa de som.
Com a análise dos dados, é possível identificar as freqüências mais alteradas pelo uso intenso, a qualidade da voz durante todo percurso, as características das emissões mais graves ou agudas do cantor. Com base nestes dados, é possível evitar a fadiga vocal, perda da qualidade da voz ou um colapso na voz (afonia) durante a maratona que os cantores enfrentam em cada carnaval. Cuidados e orientações sobre hidratação, nutrição, audição, condicionamento cardiorrespiratório, repouso corporal e vocal fazem parte do repertório de ações para garantir a folia.
O método idealizado pela fonoaudióloga, Valéria Leal, permite a conquista de novos hábitos e o restabelecimento do bioequilíbrio, conscientizando o cantor quanto à importância da prática de atividades que proporcionem harmonia do corpo e mente, favorecendo ajustes vocais mais adequados, resistência e rejuvenescimento da voz. Só assim dá pra encarar a maratona do carnaval com a “corda” toda.
Neste carnaval, estará realizando monitoramento vocal e acompanhamento fonoaudiológico de Margareth Menezes, Daniela Mercury, Tomate da banda Rapazolla, Aline Rosa da banda Cheiro de Amor e Alexandre Guedes da banda Motumbá.
Valéria Leal é especialista em Voz e preparadora vocal de cantores populares consagrados: Margareth Menezes, Carla Cristina, Aline Rosa da banda Cheiro de Amor, Tomate da banda Rapazolla, Márcio Victor da banda Psirico, Tonho Matéria do Olodum, Tiago do Samba Eu, Você e Sua Mãe, Xanddy do Harmonia do Samba, Adelmário Coelho, Marcos do Tio Barnabé, Alexandre Guedes da banda Motumbá, dentre outros.
Preparadora vocal dos treze últimos cantores revelação do Troféu Dodô e Osmar. Autora de artigos e pesquisadora sobre o comportamento vocal dos cantores de trio e professora de Música e Canto aplicados a Fonoaudiologia da UNEB-Universidade Estadual da Bahia.